o velho e o lápis


2019

Oeiras



Falham-me os dedos ao escrever. Perco a cada dia que passa a firmeza e a força para segurar o lápis. Escorrega-me quando tento guardar em letras, as memórias que o meu cérebro ainda regista. Um dia também isso se perderá, como tudo o resto se perdeu. 

Por vezes, é necessária a morte para purgar a alma dos que ficam e dos que partem. 

A minha neta veio visitar-me ontem. Dizem-me. Não o recordo. Linda, nas suas feições seguras e de traços bem delineados. O queixo quadrangular, os olhos perscrutadores. Vejo-a assim, como em criança, calada e observadora. Os olhos são os da avó, que me olham por dentro como nenhuns outros. A cara igual. Não sei já qual recordo, se uma, se outra. Provavelmente apenas a avó Marta, a minha querida Marta. Também ela se perdeu. Primeiro de mim. Depois da vida. Já tudo se perdeu. Sobram apenas as memórias que teimosamente tento registar no papel, como se isso fosse o único motivo que me prendesse à vida. Ao que resta da minha vida. Como que uma missão. Depois vêm as auxiliares tirar-me os papéis, ler o que escrevo. Abanam a cabeça tristemente, como se todo o meu esforço fosse em vão. Dizem que não escrevo nada. Palavras soltas, sem sentido. O meu pai. O meu filho. Sempre presentes, sempre constantes nos meus dissertares, e elas não os lêem, não os vêem, não os sentem. Não entendem. O lápis cai ao chão, leve como uma pena, voa-me dos dedos com um sopro mais forte de uma memória mais densa. Sempre preferi o traço do lápis, mais suave, mais imperceptível, mais susceptível de se apagar e se perder no rasto do tempo. Há palavras que mais vale que se percam no tempo, no fundo das memórias. O lápis cai ao chão. Por hoje não escrevo mais.


*



My fingers fail to write. I lose every day that passes the firmness and the strength to hold the pencil. It slips when I try to keep in letters the memories my brain still records. One day this too will be lost, as everything else has been lost.

Sometimes death is required to purge the souls of those who remain and those who depart.


My granddaughter came to visit me yesterday. They tell me. I do not remember it. Linda, in her safe features and well-defined features. The quadrangular chin, the searching eyes. I see her like that, as a child, silent and observant. The eyes are those of grandmother, who look inside me like no other. The same face. I don't know which one I remember, if one, if another. Probably just grandma Marta, my dear Marta. She, too, got lost. First of me. After life. Everything is already lost. There are only memories that I stubbornly try to record on paper, as if that were the only reason that bound me to life. What is left of my life. Like a mission. Then come the helpers take my papers, read what I write. They shake their heads sadly, as if all my effort is in vain. They say I don't write anything. Loose words, meaningless. My father. My son. Always present, always constant in my dissertations, and they don't read them, they don't see them, they don't feel them. They do not understand. The pencil falls to the ground, light as a feather, flies from my fingers with a stronger breath of a denser memory. I have always preferred the softest, most imperceptible stroke of the pencil, most likely to fade and get lost in the wake of time. There are words that are better lost in time, deep in memories. The pencil falls to the floor. For today I don't write anymore

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